ATELIÊ DE MEMÓRIAS E FICÇÃO

Ateliê Intensivo de Memórias e Ficção 

Adélia Nicolete



O Ateliê Intensivo de Memórias e Ficção foi realizado graças a uma parceria entre o Museu de Santo André Dr. Octaviano A. Gaiarsa e o grupo Pontos de Fiandeiras visando, entre outros objetivos, à difusão do acervo museológico e à criação de textos memorialísticos.
A pauta principal do grupo é a tradição oral e a memória social da região do ABC paulista. Nesse segundo aspecto, o espetáculo “Ponto segredo. Primeiros fios” foi tecido com depoimentos, entrevistas e pesquisas históricas tratados dramaturgicamente. Daí que, na associação com o Museu graças ao Proac, surgiu o desejo de ampliar a ação artístico-cultural – já presente com o espetáculo, a exposição temática com visitas guiadas, o blog, as palestras e os debates – para pessoas interessadas na criação escrita.
O projeto consistiu em oito encontros com duas horas de duração cada um, divididos em dois módulos. No primeiro, dedicado ao tratamento literário da memória, foram trabalhadas técnicas de estímulo à recordação, o que resultou em textos que diziam respeito à infância, a pessoas conhecidas, a episódios memoráveis, bem como ao processo de constituição do eu, sob a forma de autorretrato.
O segundo módulo, dedicado à ficção, tomou como base materiais do acervo do Museu e da Livraria Alpharrábio, sediada em Santo André. Os textos resultantes foram inspirados em um sinaleiro de ferrovia, fotografias e objetos diversos tais como cartas, bilhetes, marcadores de página, anotações escolares, etc. Tais elementos, pertencentes a outras pessoas, guardam uma memória particular e, grande parte das vezes, desconhecida. O trabalho dos participantes, nesses casos, foi criar um texto memorialístico ficcional para cada um deles.
Abaixo, alguns escritos resultantes do processo, criados pelas seis participantes. Foram elaborados em sala, compartilhados e analisados pelo grupo, o que resultou na segunda versão aqui publicada.

Dedicação  - Camila Shunyata

Ainda criança saboreou livros.
O tempo seguiu com as palavras.
Colheu das lembranças da escola o incentivo:
“Porque não escreve?!”
Semeou as ideias nas folhas de um caderno:
300 exemplares.
As letras vestidas de nanquim compunham a dedicatória:

 “Obrigado, professora, por me ensinar a cultivar histórias”.

O cheiro da rosa - Camila Shunyata

Nas férias de fim de ano, em minha meninice, observava minha avó Tita se preparar para me levar, com os outros quatro netos para um passeio no centro da cidade de Presidente Prudente.
Costumávamos ir à praça do centro dar farelo de pão aos pombos.
Vó Tita, caprichosa costureira, estava sempre asseada, vestida com simplicidade e beleza. E usava uma loção chamada “Leite de Rosa” ou “Cheiro de Vó”, como passei a chamá-la. Para mim este nome fazia todo o sentido, minha avó era a mais bela flor do jardim de sua casa.
No passeio, conforme íamos caminhando pelas ruas, o vento fazia com que o cheirinho de rosa perfumasse a cidade inteirinha! Como era gostoso...
Ela andava mais à frente e nós, como patinhos a segui-la. Ela pausava para atravessarmos a rua e, sem que precisasse falar, seguíamos os seus sinais.
Levávamos sempre um lanche da tarde e sacolas para recolhermos o lixo. E quando retornávamos a nossa brincadeira era ir recolhendo os poucos lixos que víamos pelo caminho.
Ao chegarmos em casa, combinávamos a ordem do banho das crianças e, sem que pudéssemos perceber, minha avó fazia uma gostosa refeição aparecer como mágica em cima da mesa. Quanto trabalho ela tinha, penso hoje. Vovó nunca parecia estar cansada, todos os seus dias eram primavera. Flor querida da minha infância.


Escuro estou agora...
 Izabel Bueno

Sou clarão. Sou aurora no negrume da noite.
Sou feito de ferro, como a estrada que ilumino. Minha tarefa é colorir de luzes a chegada do trem e o desembarque das pessoas que vêm para seu lar na última viagem do dia. Sou rude, mas dentro de mim há uma chama que acende a alegria de cada pessoa que chega à vila e vê mais que o nevoeiro e a escuridão que trespasso.
Todas as noites, quando ouço ao longe o primeiro apito do maquinista, já fico alerta. O vigia vai me levar para exercer minha função. Sou a luz. Sou os olhos brilhantes dos que chegam.
Pela via, andávamos, eu e o vigia, até a estação. Eu iluminava o caminho escuro. Íamos tranquilos, sentindo a névoa e o silêncio cotidiano. Mas um estrondoso ruído rompeu a quietude.
Uma freada brusca.
Saímos correndo. Gritaria. Desespero. Minha luz fraquejava. Corríamos mais e mais, arfando. Sou clarão, não posso esmorecer. Devo iluminar a vila, a vida... Nos trilhos... Caída. Imóvel. Sem brilho. Ofuscada pelo vermelho escorrendo.
O trem, cabisbaixo, trazia grudado em si a boina branca, único vestígio de luz que restou de alguém que apagou sua angústia na linha férrea.
Sou brilho, clarão, luminescência. Resplandeço nas trevas para os que chegam. Mas não consigo acender a chama daqueles que querem partir. Eles já não querem brilhar. Escuro estou agora.

Professor Ferreira -  Izabel Bueno

Ele era tão alto e eu tão pequenina.
Quando entrava na sala com seu avental branco, eu subia no pé de feijão e entrava na terra do gigante.
Cercado por ferozes números irracionais, ele assustava estrelas e versinhos que se escondiam, amedrontados, bem lá no fundo do meu olhar-menina.
O tambor de sua voz balançava lápis, cadernos e carteiras.
– Hoje é correção dos exercícios! Midori, pra lousa!
Todos tremiam e temiam.
“Espero que ele esqueça meu sobrenome... Espero que ele esqueça meu sobrenome...”, era a oração intensa e fervorosa de cada um.
O gigante tinha a fome numérica em suas entranhas. Mas só desejava números perfeitos. Se alguém errasse... Ai, que tristeza! Ele se calava, lançava ao aluno um olhar severo, e sua cicatriz do lado direito da face, abaixo do olho, adquiria contornos de leão. Anotava algo no caderno e dizia:
– Pode sentar!
E chamava o próximo.
– Bueno, pra lousa!
Eu me levantava, frágil e lenta, com o fardo infinito de poesia nos ombros, e pensava: “Por que será que ele sempre lembra meu nome?!”.


A Mudança Miriam Dias

Anos e anos esperando por aquele momento, parecia que nunca ia chegar.
Foi uma decisão familiar, todos estavam de acordo, menos minha mãe, tão apegada à casa, às filhas... Mas eu não. Meu coração esperava por aquele momento.
Casa vendida e cada uma foi para seu canto. Minha irmã para seu apartamento com seu filho, minha mãe para o interior de São Paulo com meu pai e eu com meu gato para uma casa com quintal.
Duas mudanças em um só caminhão.  Minha mudança foi a primeira a ser descarregada e meus pais seguiram viagem.
Na despedida, minha mãe disse: “Você não vem?”.
Respondi: “Não, mãe, essa casa é a minha casa”.
Despedi-me dos meus pais. Fechei a porta. Meu gato estava escondido, assustado com o novo. Olhei para os móveis, para as caixas, e disse com a maior alegria: “Esta é minha casa”. Estava tão cansada que deitei e adormeci.

Minha força Roberta Marcolin Garcia

Eu sinto  essa força que pulsa, como tambor tocado por mãos de guerreira, no centro de mim, abaixo do meu umbigo, acima do meu sexo de mulher, é força antiga. E...
Eu enxergo agora diferente. E...
...
Silencio para olhar quem venho sendo.
Eu hoje entendo porque desde menina tanto me agradava cuidar. Cuidar da boneca como se fosse gente. Já moça feita, cuidar dos irmãos como se fossem crias. Cuidar da minha mãe como se fosse filha. E...
Eu hoje sinto: a felicidade do cuidar é que me faz Fértil e Mulher.
Cuidar tem se revelado para mim como algo simples de tão... Sagrado.  Como regar uma pequena planta do meu jardim é cuidar para que o mundo floresça a cada dia.



Gancho Cruel Roberta Marcolin Garcia

Noite alta se fazia. Do barulho? Reinava só o silêncio.
Estava eu pendurado no... Melhor dizendo, guardado. Dizendo verdade: esquecido. Ganhando ferrugem em cada dia de frio e neblina. Minha sina: iluminar. De ferro feito. Pesado demais para mão de mulher, de criança ou de velho.
Estava eu pendurado no... Melhor dizendo, jogado. Dizendo verdade: apagado. Há dias e dias algo não funcionava bem na minha engrenagem. Mas, eis que de repente, ouço barulhos por perto. Alguém diz “Pega o que tá lá dentro e venha logo.” Minha sina, mais uma vez, se instaura. O calor do fogo me ilumina, me invade. Ilumino o chão de terra batida, o caminho estreito com tanto mato rebelde dos lados. Ilumino as pedras perigosas e a porta da casa de máquinas, severa.
O que será que destruiu o silêncio?
Ora, veja. Um cão faminto com resto de comida na boca.
O caminho de volta.
O que me aguarda?
O... Gancho Cruel na parede gelada e o silêncio. 


 Ficou de nadar - Rosenaye Mello

Quando pequenina, Nina tinha um enooooorme sonho: um dia conhecer o Mar.
Menina roceira, de ligeireza vapt-vupt-viva, sempre tinha o "costumi" de correr até a casa de Dona Fulô pra “pidir” livros de historinhas...
Os livros com figuras desenhadas eram os que ela mais amava!
E quando tinha então relação com o Mar... -vixi maria bunita-, ela se eesbaaanjaaaaaaava de alegria e mergulhava -tibum-; pra dentro-glub-; das-glub-glub; funduras -glub- glub-glub-; de sua imaginura...
Nessa fundura imaginada, essa que é a pequenina Nina danada já aprendia em meio àquela região de roça e mata a encher com novos ares seu balão-pulmão.
Imaginava sem parar qual seria o cheiro daquele lugar com aquela água toda por cima de um tantão de areia ajuntada (como o livro já desenhava) “mais qui num tanto”: sem “matu”, sem os “bichu”, as “prantação”, terra “firme di pisar”... Pensava caladinha.
– Num pode ser o mermo cheirinho das bandas roceiras de cá!?!
E olhem só, toda vez que se via chegando até lá, Nina pequenina sentia um estranho salivar que inundava nuuumhhh... inspirar, toda sua boca.
Ria suzinha...de graça... boca pequenina pra mundaréu d'água.
Dia desses, Dona Fulô, antes de lhe mostrar nova navegação de jangada com livros que chegavam já nas beiras daquele rio - donde e como? sabe-se lá sô!-, botô então a pequenina pra fechar os olhinhos, deu a ela um cadinho de claras pedrinhas na palma de sua mão e murmurou:
– Pruva! Mais só um cadim... vem de lá das larguras di fundo: é sar marinho!
Nina???
Ah... essa menina, de sonho feito ficô! Pôs os pedacinhos do mar em sua boca e logo o forte sabor pro mar a levô.
Aquela estranheza que antes só vinda das imaginura da pequena aconteceu com novo instante...
Boca encheu-se d’água como dantes, mas dessa vez água “di mar” pra Nina pequenina tão doce ficou de nadar...

 Espaço em branco  Rosenaye Mello

Digo sempre, por entre essas linhas...
Sob essa farta brancura de folhas, onde mão minha baila a ruflar apoio na pena bico de tinta.
Estes todos voam junto a mim com serena grafia viva para marcar cada página de vida.
Guardada entre essas duas amadeiradas capas duras de sonoridade preenchida (não oca!) de aroma campestre, venho a molhar em pleno dia de sol com esta tinta... folhas.
Estas que já nasceram secas, mas alinhavadas.
Dia bonito pra foto marcada.
As flores já estão aqui na casa.
Já o vestido, quando eu o vi: – Meu Deus!
Senti que este sim é um bom presente!!!
Tanto espaço em branco e tão mais macio que minhas secas-folhas.
Não vejo a hora de adentrá-lo para iniciarmos nossas grafias.
Quero, lá na frente de um outro tempo, olhar a revelação da imagem e ler a impressão não só da prosa de cada dia ... mas:
Sim: toda a poesia... este rio sinuoso em canto de boca.
Sim! Quero ver, será que nossos olhos já descascados das tolas triviais banalidades serão mesmo intérpretes do coração? 

 Fotografia  - Vivian Darini

Eram cinco irmãos, no princípio, quando se podia sentir o cheiro do éter.
Um trajava-se com clareza, abrindo espaços sem medo; o outro se vestia de cautelosa sobriedade, sem tanta luz: pés no chão. Entre eles meu pai, nem preto nem branco, aquele que daria ao público o necessário equilíbrio para inspirar confiança, e meus tios mais novos: mesclados, divididos, enfadados, aquela luz do meio dia sobre o toldo vermelho, que daria uma ótima vela para o meu barco. Naquele espaço de homens, onde o degrau era mais baixo, não foram chamadas as mulheres: mãe, avó e irmã que ficaram atrás das paredes segurando o telhado, quando de algum modo compreendi meu destino anunciado sem demolição, apenas com tinta nova.


Tuychá  - Vivian Darini

Era assim, eu e ele, nessa ordem. Eu tinha mãe, ele madrasta. Eu branca, ele negro, um mais sujo que o outro, pés descalços. Éramos os mais velhos da turma, ele com vantagem de exatos quatro meses, eu com a vantagem de mais irmãos. Ele sempre dizia que o nome do amor da sua vida era o meu e eu nunca pensei que seu amor fosse meu. Na memória, a gema cheia de sal pela disputa de quem poderia suportar mais – rimos, sem suportar, cúmplices na trégua e na derrota que veio de fora: agora vocês vão comer esses ovos até o fim. Éramos assim, eu, ele, gema amarela feito sol. Veio a mudança, do caminhão via meu amigo ficando para trás... queria que ele parasse de chorar. Nunca entendi seu nome, já nem preciso, é como riso de criança, sem rumo, rio.


Quantas histórias pode inspirar essa imagem de Débora Bolzan? Ela foi clicada no acervo do Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa.


ATELIÊ DE MEMÓRIAS E FICÇÃO

coordenação: Adélia Nicolete.

informações sobre datas, horários e programa - enviar e-mail com o assunto "Ateliê de memórias" para museu@santoandre.sp.gov.br ou adelianicolete@uol.com.br




2 comentários:

  1. Minhas queridas meninas escrevedoras!
    Quanta emoção ao ler seus escritos, nascidos de memórias tão preciosas, de observação atenta do mundo e também do colocar-se no lugar do outro, ainda que esse outro seja um objeto.
    Muito obrigada pelos oito encontros que tivemos no Museu e no Alpharrabio. O Ateliê tem dessas coisas: tão importante quanto o encontrar a escrita é o encontrar-se e o encontrarmo-nos.
    Um abraço demorado em cada uma de vocês.

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  2. Coisa boa e ampla senti ao ler e reler os textos gerados e nascidos em nosso querido Ateliê. Sou grata a cada escrevedora que compartilhou seus cristais-palavras-imagens. Em minha memória, já que é disso que falamos, ficará sensação boa de tardes agradáveis e desafiadoras lá no Museu de Santo André e também na Livraria Alpharrabio. Gratidão especial para nossa querida Adélia que nos mostrou possibilidades diferentes de nos encorajarmos a escrever, nos desafiarmos a deixar pintar o papel com palavras-pedaços-de-nós. Namastê. Roberta Marcolin Garcia.

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