O ATOR-PRODUTOR – Parte
II (conclusão)
05.06.2014
Camila Shunyata
A invenção
Os elementos destacados num caderno de pesquisa artística por
vezes tangenciam áreas diversas! Eu, por exemplo, anoto insights, devaneios e
sonhos, bem como imagens, registros de falas do diretor sobre desenhos de luz
da cena, observações do dramaturgo acerca das intenções dos atores na
movimentação espacial de cena, além de propostas de adereços para apresentar ao
cenógrafo (que também pode ter dupla função como aderecista). Ou seja, assim
como eu, todos os envolvidos exploram a sua percepção para além do que seria a
sua atribuição: o diretor vislumbra (antes mesmo de que o iluminador proponha)
a iluminação de uma determinada cena; o dramaturgo compreende o gesto, o
movimento dos atores em deslocamento pelo espaço físico da cena como uma
palavra. Todos colaboram, propõem, mas haverá momentos em que cada qual em sua
esfera de atuação refletirá e argumentará sobre suas escolhas.
No meu caso, porém, enquanto meu lado atriz está envolvido
propondo cenas, reagindo aos estímulos, o lado produtora também está presente,
olhando o cronograma, fazendo especulações do tipo “tomara que consigamos verba
para realizar isso, pois potencializa a cena, é tão plástico, poético, tão
significativo...”. É assim que o
ator-produtor coleta as proposições de todos e leva para aquele outro campo, o
da produção, para que se analise a
viabilidade daquele projeto. Ele muitas vezes terá de “esquecer” que faz parte
do espetáculo, que integra aquele processo altamente sensível, criativo, a fim
de que possa tomar distância emocional da situação e dizer, de forma racional,
que não há, por exemplo, dinheiro suficiente para aquele intento.
Mas será que essas fronteiras entre emoção e razão existem
mesmo? Creio que não. Quando se dá conta,
o ator-produtor já colocou suas reservas, suas economias pessoais no orçamento
da produção, constatando, na maioria dos casos, que ainda assim não é suficiente
para contemplar o projeto original. Se não bastasse, esse ator-produtor ainda
anima o grupo com algumas falas motivacionais, ao mesmo tempo em que assume
outras incumbências (que se não forem por ele assumidas ninguém o fará) para as
quais descobre sua pequena ou grande habilidade: fotógrafo, designer, assessor de imprensa, webdesigner, publicitário, assistente de
cenografia, cenotécnico, assistente de iluminação, entre muitos outros.
Quando o trabalho estréia, depois de tanto drama ou tanta tragicomédia,
é uma emoção tamanha para o ator-produtor! É como se cada um desses
profissionais dentro dele se comovessem ao mesmo tempo, num misto de
felicidade, satisfação, alívio, ansiedade... E, confesso, um tanto de temor
sobre qual será a vida desse rebento/ obra. Porque não basta a concretização do
espetáculo! Comercialmente falando, ele é apenas um produto que, para gerar
alguma renda, deverá ser “valorado”, apreciado, enfim, comprado.
O ator-produtor se refaz do cansaço daquela grande
“maratona”, o que não é difícil, pois afinal, ele está feliz com a
concretização do projeto, e começa a buscar vias de difundir o trabalho. Passa, então, a uma sequência de “nãos” e, às
vezes, um ou outro “sim”. Ele entende as deficiências culturais envolvidas
nesta situação. Há, entre outros, um problema com relação à alta oferta de
espetáculos na cidade e o público, por sua vez, tem predileção por espetáculos
que trazem um forte apelo midiático. Ou seja, o teatro de pesquisa não está no
hall de interesse do público em geral, creio que pelo seu forte perfil
reflexivo.
Nessa altura, o ator-produtor provavelmente se agregará a
outros coletivos e grupos de teatro para elaborar propostas que viabilizem a
produção cultural naquele contexto. Discutirá a permanência, a resistência, a
autonomia dos artistas no seu fazer, promoverá encontros, fóruns, palestras,
mostras... Reforçará o coro dos
resistentes a debater e propor ideias que dizem respeito às políticas públicas
para a cultura, buscando legitimar este espaço de reflexão, ação dentro, entre
e ao redor do campo criativo.
O ator-produtor está engajado no teatro de pesquisa, no
teatro de memória, está comprometido com a história, com os pés calçados no
passado, no futuro e no agora. Esse ator-produtor pode até ficar cansado, mas
sempre motivado segue fazendo seu caminho ao caminhar.
O ATOR-PRODUTOR – Parte I
02.06.2014
Camila Shunyata
Atriz e co-fundadora do grupo Pontos de Fiandeiras
A necessidade
Desde o momento em que comecei a atuar como atriz,
simultaneamente assumi a função de produtora. A vontade de constituir um grupo
de teatro profissional me levou a observar a experiência de outros grupos e a
maneira como se organizavam. Assim pude perceber que o trabalho artístico
agregava outros profissionais, dentre eles a figura de um produtor que olhava
para a gestão do projeto como um todo. Deste modo, o desejo de atuar como
atriz, constituir com outros artistas um grupo de teatro de pesquisa me fez
descobrir a produção, ou melhor,
modos possíveis de produzir (posto que não há receituários para isso). Sendo
assim, o desejo de trabalhar com teatro e a falta de condições para contratar
algum profissional da área da produção
para o estabelecimento das bases para se desenvolver o trabalho, gerou em mim a
necessidade de aprendizagem, de descoberta, de invenção e da consequente
apropriação desses novos saberes.
Dadas a necessidade de lidar com recursos e verbas, atuo
ainda hoje na produção do meu grupo. Porém, acredito que se tivéssemos condições
de contratar um profissional que trabalhasse exclusivamente nisso, seria
difícil desligar-me dessa área. Talvez pelo
fato de minha prática artística amalgamar-se cada vez mais com a prática de
produção, busco potencializar e tornar cada vez mais criativas essas duas
atividades. Como atriz de grupo de teatro de pesquisa, vejo-me como sujeito
inquieto, curioso, envolvido em toda proposição, almejando o melhor
desenvolvimento da pesquisa em si e das condições necessárias para que aquele
trabalho aconteça. E não é essa a função do produtor? Garantir as condições
ideais para que o trabalho seja realizado? Tais práticas se tornaram cada vez
mais indissociáveis.
Se há uma queixa nesta dupla função é por ela não gerar
oportunidades para o aprofundamento do trabalho como atriz, algo que envolve estudos,
aulas, tempo dedicado exclusivamente à interpretação. Chego no espaço de trabalho, verifico se o
chão está limpo para realizarmos o ensaio. Os demais integrantes ainda não
chegaram, verifico se tem água no filtro, papel higiênico no banheiro, se tem
pó para passar um café. Consulto a agenda para verificar qual o enfoque do
ensaio no dia de hoje e se existe alguma pauta para uma reunião com os
integrantes no início ou final do dia. Depois consulto o caderno com anotações
sobre o processo criativo. Preciso me concentrar muito para não misturar
aqueles assuntos que dizem respeito à estrutura de base do trabalho daqueles
que são oriundos do próprio objeto de pesquisa artística.
A Golden Thread (1885)
As Moiras com o Fio da Vida
John Melhuish Strudwick (1849 – 1937)
As Moiras com o Fio da Vida
John Melhuish Strudwick (1849 – 1937)
OS FIOS DO TEXTO
Adélia Nicolete
Mestre e doutora em Teatro
Responsável pela dramaturgia de “Ponto segredo. Primeiros fios.”
A
palavra texto, que estamos
habituados a associar à palavra, é da mesma família da textura, da tessitura,
do tecido, enfim. Não é à toa que para o povo dogon da África ocidental, a tecelagem, atividade de importância primordial para a comunidade, é
assimilada à palavra. Segundo a tradição, a primeira palavra foi a primeira
faixa de algodão tecido, que jamais deverá ser cortada.
Para aquele povo, do mesmo modo que a tecelagem é a união de fibras, o ato
de falar firma a vida social. Cada instrumento ou etapa da ação de tecer, por
exemplo, corresponde a um órgão ligado à palavra. Assim, a polia está associada
às cordas vocais – por causa do som, do rangido –, o tecer está associado à
boca, a lançadeira à língua, e o pente aos dentes. O tecido é entendido como um
conjunto de palavras em que os fios se entrelaçam como os elementos da
linguagem, animados pelo ranger da polia, o barulho dos tensores e da
lançadeira. O trabalho de tecer evoca um discurso, uma fala cujo sentido é
revelado pelos motivos que aparecem no tecido.
É assim também com o texto teatral, entendido aqui como a
escritura/tessitura geral do espetáculo e não somente como aquilo que é emitido
vocalmente pelos atores. A encenação é a trama de fios diversos, cada um com a
cor e a textura que lhes são próprias. Em grande parte dos casos há, sim, o fio
da palavra falada. No entanto, a leitura total da obra se dá graças ao
entrelaçamento dos fios da luz, das sonoridades e da gestualidade, os fios da
configuração cênica, dos cenários e objetos, do visagismo e tantos outros. Não
é à toa que em teatro usam-se termos tais como “costurar ou alinhavar as
cenas”, “arrematar”, “não deixar fios soltos”, por exemplo.
O momento culminante de qualquer trabalho dessa natureza dá-se no contato com
o público. Tal qual um tecelão, cabe ao espectador, no contato com a obra,
completar a seu modo o enredo com os fios de sua experiência, de sua formação,
de sua memória. Há, inclusive, espetáculos ou perfomances até certo ponto “incompletas”,
pois permeáveis à intervenção direta do público no momento da apresentação. Ou
seja, o trabalho é tecido a cada sessão de um modo diferente.
“Ponto segredo. Primeiros fios” é a faixa de algodão tecida pelo grupo
Pontos de Fiandeiras, pelos artistas que a ele se agregaram e, a cada dia,
pelos espectadores que trazem seus fios para tramarem com os nossos.
Parabéns pela iniciativa do blog, Adélia, uma forma sempre interessante de juntar os resultados das experiências do processo "Fiandeiras" num só local. Este seu texto bem diz da maravilha do texto do espetáculo e do processo e os respectivos propósitos. Acompanho desde o início este projeto e deixo aqui patenteado o meu entusiasmo. Vida longa!
ResponderExcluirDalila, obrigada pelo incentivo inaugural - em todas as fases do nosso trabalho! O blog é parte do conjunto de ações realizadas em parceria com o Museu. Achamos que seria uma forma de compartilhar o processo e as experiências - até porque muita gente gostaria de prestigiar, mas não pode, por razões de distância, tempo, etc. Na verdade, eu peguei carona, porque a ideia e toda a mão de obra do blog é do Pontos de Fiandeiras. Um abraço, querida!
ResponderExcluirViva todo esse pessoal maravilhoso do Pontos de Fiandeiras!
ResponderExcluirSempre me toma a emoção quando se fala do tecer, fiar, crochetar, tricotar, fazer fuxicos e compor apliques e patchs, assim como escrever! Todos processos criativos, amorosos e plenos de atenção do olhar! Esse grupo tem se mostrado perito em alinhavar vidas e seus processos e isso passa ao ouvinte, ao espectador encantado a possibilidade de se sentir VIVO! Desejo muito mais sucesso, muito mais alegrias e muito mais encantamento. De longe ou de perto a gente segue esses fios e linhas nos seus pontos por nós sentidos! um beijão carinhoso e como disse Dalila, vida longa !!
ResponderExcluirObrigada pelo seu olhar atento e amoroso, Elaine. Nosso trabalho só tem sentido quando conseguimos ampliar e manter a rede, seja com amigos como você, seja com o público que vem chegando, aos poucos, de mansinho. Um abraço apertado, que nos enlace!
ExcluirObrigada pelo seu olhar atento e amoroso, Elaine. Nosso trabalho só tem sentido quando conseguimos ampliar e manter a rede, seja com amigos como você, seja com o público que vem chegando, aos poucos, de mansinho. Um abraço apertado, que nos enlace!
ExcluirOi Camila, boa tarde! Após a leitura, ficou um gostinho de quero mais e também um forte desejo que possa a Deusa Nan (deusa da necessidade) trazer as respostas ou as pessoas que possam cobrir essa parte dos afazeres e que haja aquele apaziguamento interior para os deveres. De alguma forma eu entendo isso perfeitamente. Quando a nossa forma de expressão é "limitada" o ser criativo em nós se angustia e no meu caso berra..rsrs. Mas o reverso também é fato, mesmo que outra pessoa cumpra a parte produtiva da produção, nosso olhar que advém do campo sagrado do feminino, feito amor de mãe e tessitura de fio forte, estará de olho, estará atenta, estará presente. Mas sigo na torcida por um tempo maior para sua "própria produção". Escreva mais (tenho certea que muitas pessoas ainda não se deram conta como esse ofício é importante! beijos para as fias todas, Elaine
ResponderExcluirElaine, obrigada pela leitura carinhosa. Tenho fé que nosso ato criativo pouco à pouco expandirá as oportunidades de aprimoramento do nosso fazer teatral e consequentemente o espaço para refletirmos sobre estas práticas, registrarmos, compartilharmos das experiências que concordo, é um trabalho extremamente importante. Quiçá aproveitemos muito deste momento para radicalizarmos as nossas bases, nos fortalecermos naquilo que cremos e desejamos. E como a figura da mãe está mesmo fortemente presente! Zelando e incentivando "vai, você pode ir além!". Na quinta-feira postaremos a II parte: A invenção. (Claro, sugestões de título da Adélia Nicolete que não posso deixar de mencionar nos créditos, excelentes propostas que eu acolhi e assumi, srsr.) bjs, Camila S.
ExcluirOi camila gostei do seus escritos e da trajetória sua para com o grupo e a visão realista do papel do diretor, e de sua lutas , parabéns pelo trabalho e que ele ganhe força, cada vez mais e se achegue de mais pessoas . Abraço! Neimar
ResponderExcluirAmei o espetáculo e saí com o gostinho de quero mais! Vocês são muito talentosas, vão longe com essa arte maravilhosa, tecendo muita cultura em nosso Brasil! Parabéns, texto lindo, canções belas e atuações divinas, grande abraço ao grupo
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