PALESTRAS “TRAMAS DE IDEIAS”







Registro realizado por Dalila Teles Veras sobre a sua participação na 3º "Trama de Ideias" realizada no dia 16 de julho no Museu de Santo André.


Dalila Teles Veras e Neri Silvestre

MEMÓRIA E POESIA - UM DEPOIMENTO


Pronunciamento de Dalila Teles Veras durante a mesa de debates "Atuação cultural, política e coletiva - redimensionando a memória" no Ciclo de Palestras Tramas de Ideias, dentro do projeto Alinhavando Pontos da Memória Andreense, do Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras, no Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa, em  16.07.2014

Se me permitem, inicio com algumas frases retiradas da peça "Ponto Segredo" e que de muito me servem neste momento: "o problema é o começo".

Para quem, como eu, se propôs a alinhavar os pontos entre memória, literatura e atuação e dos quantos nós foi/é preciso para re-ligar o que se encontra separado, ou seja, o pensar e o fazer valer o pensado, através de atuações coletivas e propostas de políticas públicas da memória e da cultura, de muita valia também, esta outra preciosa frase "linha boa é aquela que enrosca".

Sem medo de me enroscar, corro esse risco e peço-lhes permissão para falar aqui de poesia. Sim, porque sou poeta e faço da poesia minha principal expressão, ainda que o ativismo cultural, por lidar com questões coletivas, por vezes apague na memória de minha cidade este meu ofício. Mas ao falar de poesia é de memória que estarei a falar.

Antes, um pequeno preâmbulo: nasci em Portugal, na Ilha da Madeira de onde vim menina, aos 11 anos de idade. Resido em Santo André desde 1972. Sou, portanto, uma escritora brasileira que nasceu em Portugal.

Todo aquele que emigra é sempre um desterritorializado, estrangeiro sempre em toda a parte. Minha mãe, que atravessou o Atlântico em 1957, na terceira classe de um transatlântico com o emblemático nome de Santa Maria, sem saber que era a viagem definitiva e sem retorno, foi sempre, ainda que aclimatada ao novo mundo, uma "estrangeira". Não guardava nada. Viajou carregada pelo marido sempre à busca de novos horizontes, carregando os filhos  e o essencial, deixando seus pertences e sua primeira história para trás, para sempre.

Talvez por medo de vir a ter que deixar tudo novamente, não guardava nada, não acumulou mais nada até o seu de sua vida, aos 77 anos. Seu espólio resumia-se a uma caixa de sapatos com alguns documentos.

No meu caso, ocorreu exatamente o contrário, passei a juntar coisas, tudo aquilo que pudesse representar a minha própria memória, minha passagem, minhas vivências e também as de outros, como é o caso dos milhares de livros e documentos que constituem o acervo do Abecês - Núcleo Alpharrabio de Referência e Memória, que fui juntando ao longo de minha vivência na região do ABC e que hoje, abrigado nas dependências da Livraria Alpharrabio, está disponibilizado à pesquisa.

Voltando ao meu caso, é a memória dessa memória do desterro cultural que me impulsiona o registro.   O impulso de guardar talvez como compensação do perdido, a ânsia de re-ligar aquilo que a ruptura e o Choque cultural desligou.

Assim, tenho feito de minhas memórias pessoais, não só as passadas, mas as presentes, a minha relação com a urbanidade, um exercício estético. Memória recriada, tratada esteticamente como literatura (crônica e poesia). Textos e poemas publicado em jornais, revistas, blogs, redes sociais e livros estão impregnados dessas minhas vivências.

Eu e minhas circunstâncias - a memória e a cidade como matéria de poesia.

Como estou concluindo um livro de poemas ao qual dei o título "Solidões da Memórias", achei que haveria alguma pertinência complementar esta minha fala com alguns desses poemas inéditos, exemplificando com poesia aqui o que pretendia demonstrar, ou seja, a presença da memória na elaboração da poesia. Aviso, antes, que esta é a primeira vez que leio em voz alta e em público estes poemas. Com a devida licença, faço-os minhas cobaias poéticas.

Inicio com este poema que abre o livro e que nasceu da ideia do "rizoma" e deu origem ao projeto do livro:

rizoma

             "vestígios de pegadas nas areias, / restos d´ossos roídos e d´espinhas"

                            António Barahona

 
 

 

a infância e a memória 

da infância, submersa

na líquida travessia

 vez por outra

o atlântico deposita

ossos datados

nas terras do exílio

(a menina antiga

recebe os sinais

códigos esquecidos

legendas para o lembrar

- revivências)

a memória da infância

é a memória possível

(e só à poesia cabe recriar)

Foi em 2012, revisitando a Ilha da Madeira, quando anotei na primeira página da minha caderneta de viagem, a palavra "Rizoma" e o verbete dessa palavra no Dicionário Aurélio, seguido dos questionamentos: rizoma ilhéu? rizoma português? rizoma líquido? raízes aéreas? marítimas?

No final da viagem, escrevi, a lápis, como sempre faço, um texto que, vim a descobrir depois, continha todo o "roteiro" para os poemas que viriam a compor o livro, todos voltados para esse "rizoma", ou seja, o meu período de formação como ser humano, minha infância na terra natal, culminando com a ruptura da travessia e o choque cultural da nova terra de adoção.

Neste poema, a evocação do aprendizado através da correspondência com os parentes distantes:

posta restante

       "Há muito tempo, sim, que não te escrevo./ Ficaram velhas todas as notícias."

                                      Carlos Drummond de Andrade

 

 

tempo de ruas sem nome

casas sem número

e pregão semanal

no modesto prédio dos correios

um a um, os envelopes

passavam às mãos dos destinatários

a chama da saudade atiçada pelas

bandeirinhas coloridas

e a frustrante incapacidade na

decifração dos códigos envelopados

a menina (verdes letras) aceitava

ela também aos sobressaltos

a incumbência da leitura das missivas

garranchos, invariavelmente iniciados

com esta saudação formal

rogo a deus que estas mal traçadas linhas

te encontrem e a todos os teus de boa e feliz saúde

que a minha é sofrível graças a deus

(em sua atávica melancolia

o insular rejeita a euforia

-  entregar-se ao sofrer é sua forma

de estar no mundo, fadário)

em lamúrias e promessas de regresso

prosseguia a ladainha (apaziguamento

                 da culpa pela ausência)

na impossibilidade 

da elucidação das epístolas

cabia à menina inventar

substituir a palavra oculta

por verossímeis notícias

fatalizada para sempre

                       ficaria

Coincidentemente também com epígrafe do nosso Drummond (todos os poemas do livro trazem epígrafes de poetas portugueses e brasileiros com quem estabeleço interesses em matéria de linguagem e poesia) este poema, a título de autorretrato:


confidência da madeirense

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
                 " Alguns anos vivi em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por isso sou triste, / orgulhoso: de ferro."

                         Carlos Drummond de Andrade 



alguns anos vivi na madeira

principalmente nasci na madeira

por isso sou melancólica, teimosa: urze

de nascença, em luta frente às intempéries

(do solo, do vento e das vagas marítimas)

alma em permanente desassossegar

da madeira nada de material veio comigo

e não há nada que eu possa ofertar

mas da madeira vem este ar atrevido

a língua maldicente e áspera

e o hábito de tudo reclamar

atavismos que a consciência, por vezes

                                 rejeita

a madeira não é apenas fotografias

é a memória real dos precipícios

                            e das vertigens

encordoamento 

        do que não parecia lembrado

                             mas é

a memória do que não foi

                       mas poderia

e sequer dói

 

 

E retomando mais uma fala da bela dramaturgia da peça Pontos Segredo, "cansa lembrar, dizer das coisas guardadas", vou encerrando por aqui, ainda que não esteja cansada, mas com receio de cansa-los.

A título de esclarecimento: a minha fala naquele momento não foi exatamente a deste texto. A fala se deu a partir de um roteiro previamente estabelecido por mim que viria a constituir a "espinha dorsal" do que seria dito, a mesma "espinha dorsal" do que agora está escrito, como memória daquele momento, compartilhado com o ativista cultural Neri Silvestre, com a mediadora "fiandeira" Roberta Marcolin Garcia e o público ali presente. A intenção de passar aquela palavra oral para esta palavra escrita não é outra senão a de compartilhar com mais gentes algumas das ideias e poemas que foram ali compartilhadas.

 

Tramas de ideias – encontros para relembrar, revelar e refletir

O espetáculo Ponto segredo. Primeiros fios contempla a apropriação artística de fatos, estudos e depoimentos ligados ao ABC com foco no trabalho fabril e doméstico. A exposição Tramas do trabalho, fios da memória, elaborada de forma colaborativa com a equipe do Museu de Santo André, revela fragmentos da materialidade ligada ao tema de nossa pesquisa. Associado a esse movimento entre memória e arte, propõe-se o Ciclo de Palestras Tramas de ideias que, por sua vez, completa o alinhavo pretendido pelo grupo e constitui o acervo imaterial a ser divulgado.


A cada dia uma dupla de convidados desenvolverá um tema referente às suas pesquisas e ações que, de algum modo, estabeleçam interação com a proposta geral do projeto. A partir dos estímulos suscitados e das reflexões, a palavra será aberta ao público a fim de questionar e complementar com lembranças associadas a suas trajetórias pessoais.


Desse contato coletivo entre obra de arte, espaço museológico e pensamento, pretende-se a reflexão sobre o papel e a importância de Museus, do Teatro e da Memória na vida cotidiana e no mundo de hoje.


 


CICLO DE PALESTRAS – TRAMAS DE IDEIAS
 

MESA 1Abertura do Projeto – Uma reflexão sobre a Memória

Data: 13/05. Terça, às 19h

Mediação de Sérgio Pires


LUÍS ALBERTO DE ABREU (Dramaturgo e Roteirista)

EMENTA: Mnemósine, a Memória, é a mãe de todas as Musas. As Artes são, portanto, filhas da Memória - daí a pertinência e também a importância da ação artística no espaço museológico. Devolver, religar as filhas à sua mãe é reintegrar simbolicamente o que a sociedade atual insiste em fragmentar.
 

SILVIA PASSARELLI (Doutora em Arquitetura e Urbanismo e Professora da Universidade Federal do ABC)

EMENTA: Memória e patrimônio cultural: o que é patrimônio cultural e por que devemos preservá-lo são questões que envolvem nossa relação com o cotidiano da cidade. Tratar deste tema envolve compreender nossas relações de identidade com a cidade e com seus moradores, identificando lugares de memória que queremos ver preservados e a proposição da cidade que desejamos viver.

 

MESA 2Do chão da fábrica ao trilho do trem

Data: 17/06. Terça às 14h30.

Mediação de Adélia Nicolete

 
ADALBERTO DIAS ALMEIDA (Pesquisdor Histórico, Membro do COMDEPHAAPASA, Conselheiro do GIPEM, Vice Presidente do Instituto do Patrimônio do ABC)

EMENTA:  História não contada com os desacertos na implantação da famosa SPR Inglesa. A mão de obra especializada e a herança desse know-how.

 
VALDO RUVIARO (Sociólogo e Pesquisador da história dos movimentos populares)

EMENTA: Num planeta chamado Terra,  a classe dominante batizou um "pedacinho" de chão com o nome de Santo André. O "chão de fábrica" foi e continua sendo um "belo" cenário do conflito de classes neste pedaço do referido "Santo". Através de um "varal histórico" com 135 imagens, vamos tecer alguns "pontos" dessa história. Menos que palestra, faremos um passeio histórico pelas lutas ocorridas no período de 1870 a 2014. 

 

MESA 3 – Atuação cultural, política e coletiva – redimensionando a memória

Data: 16/07. Quarta às 19h.

Mediação de Roberta Marcolin Garcia


DALILA TELES VERAS (Escritora, Editora e Animadora Cultural)

EMENTA: A partir de suas próprias memórias e do ofício de escritora, Dalila Teles Veras  alinhavará os pontos entre memória, literatura e atuação e dos quantos nós foi/é preciso para re-ligar o que se encontra separado, ou seja, o pensar e o fazer valer o pensado, através de atuações coletivas e propostas de políticas públicas da memória e da cultura.
 

NERI SILVESTRE (Produtor Cultural, Idealizador do Sarau na Quebrada e Poeta).

EMENTA: Um olhar atuante sobre o Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, ambos projetos do Ministério da Cultura do Governo Federal,  resgatando a importância das ações realizadas na transmissão, construção e preservação da memória local, da cultura griô e de outros aspectos da cultura popular brasileira.

 

MESA 4 – Manifestações da memória regional do Grande ABC - disputas simbólicas e materiais

Data: 21/08. Quinta às 14h30.

Mediação de Camila Shunyata 

MARCELO CARDOSO DE PAIVA (Historiador e Pesquisador)

EMENTA: O historiador, também habitante do ABC, abre uma perspectiva sobre as manifestações da memória regional para, em seguida, discutir o papel das políticas municipais de preservação do patrimônio cultural do Grande ABC na sua proteção e valorização. 


MARLY RODRIGUES (Doutora em História e Pesquisadora)

EMENTA: Procura-se abordar a construção da memória em Paranapiacaba como um processo social que vem envolvendo a população e os poderes públicos, no qual se desenha um quadro de  disputas simbólicas e materiais.
 

MESA 5 – “Hamlet S.A.”  e ‘Geração 80”: memória e teatro em Santo André

Data: 17/09. Quarta às 19h.

Mediação de Adélia Nicolete
 

LÍGIA HELENA (Atriz e Integrante da Cia Estrela D’Alva)

EMENTA: Atriz e fundadora da Cia. Estrela D’Alva de Teatro fala sobre a criação de Hamlet S.A., espetáculo inspirado nas dramaturgias de Shakespeare e Heiner Müller, e que traz à tona o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Um encontro para abordar a influência da relação política do artista com a cidade no processo artístico.
 

SOLANGE DIAS (Dramaturga e Integrante do Teatro da Conspiração)

EMENTA: Reflexão sobre o processo de pesquisa e criação do espetáculo "Geração 80" do Teatro da Conspiração. Abordagem dos procedimentos de trabalho e das escolhas dos materiais de pesquisa a partir de vivências pessoais, pesquisa de arquivos de memórias familiares e dados históricos  para criar a trajetória de um grupo de jovens amigos que viveram em Santo André nos anos de 1980.
 

MESA 6 – Encerramento do Projeto – retrespectiva e perspectivas

Data: 15/10. Quarta às 19h.

Mediação de Camila Shunyata e Roberta Marcolin Garcia

 
ADÉLIA NICOLETE (Doutora em Artes Cênicas e Dramaturga)

EMENTA: Compartilhamento do processo de criação da dramaturgia do espetáculo "Ponto segredo. Primeiros fios". Um relato que cobre desde as pesquisas iniciais, passando pela colaboração criativa de todos os envolvidos até a configuração do texto. Para além do espetáculo, uma reflexão de como se dá a dramaturgia da exposição e da ação criativa do grupo no espaço do Museu.


SÉRGIO PIRES (Filósofo, Dramaturgo e Diretor Teatral)

EMENTA: Perguntas que inquietam: o que desperta a origem de uma pesquisa criativa? As mudanças que se fizeram  necessárias no percurso de determinado trabalho podem  abalar a concepção primeira de uma proposta? Como manter a Origem e permitir que o fazer teatral se mantenha vivo e permeável a mudanças? Essas serão algumas das inquietações que movimentam a reflexão sobre o processo contínuo do espetáculo “Ponto segredo. Primeiros fios”.
 
 
 


 

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